NOTA 85 - AS PALAVRAS - de Jean-Paul Sartre
1 - Eu encontrara a minha religião : nada me parecia mais importante do que um livro.
2 - Platónico por condição,eu ia do saber ao seu objecto;achava na ideia maior realidade que na coisa.
Foi nos livros que encontrei o universo: assimilado,classificado,rotulado,pensado,ainda temível,e confundi
a desordem das minhas experiências livrescas com o curso aventuroso dos acontecimentos reais. Daí veio
esse idealismo de que levei trinta anos a desfazer-me.
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Quase todos nós andamos ás voltas com as palavras desde que nascemos até que morremos. Pouco depois de nascermos
começamos a falar,utilizando palavras,e nunca mais deixamos de o fazer. As palavras servem para escrever,para ler,para falar.
Falamos de tudo e de todos.As palavras servem para elogiar,para criticar,para esclarecer,para aprender,para ensinar e para uma
infinidade de mais coisas.Escrevemos cartas e postais,com palavras,e lemos livros com palavras. Toda a vida assim é. As palavras servem para caracterizar a nossa vida. A vida que temos pelas palavras que dizemos e a vida que não temos pelas palavras que ficam por dizer.
As palavras são,pois,uma grande conquista da humanidade. Sem a linguagem,materializada nas palavras,os humanos não eram quem são.
Há uns para quem as palavras valem para se exprimirem no dia-a-dia,na azáfama quotidiana de se ir construindo o futuro. Há outros que
vão mais longe e usam as palavras para escrever livros. Para os outros lerem as suas palavras. São os escritores.
JEAN-PAUL SARTRE foi um mestre no uso das palavras nos seus livros. Sartre,um dos expoentes do Existencialismo,a filosofia que pode
ser definida como uma filosofia da liberdade e da responsabilidade; ao homem compete inventar a própria vida e o próprio destino,escolher
a própria liberdade e construir o seu valor.
Antes de irmos ás palavras de Jean-Paul Sartre,vejamos alguns passos que ele deu em vida. Nasceu em Paris em 1905.Aos dois anos ficou
orfão de pai e a mãe voltou a casar mais tarde com o director dos estaleiros navais de La Rochelle e foi aí que Sartre conviveu com a burguesia,que mais tarde iria satirizar nas suas obras. Em 1929 licenciou-se em Filosofia,em Paris,e cumpriu o serviço militar. Em 1931
foi nomeado professor de filosofia na cidade de Havre. Só em 1937 abraçou a actividade literária quando já era professor de filosofia em
Paris.É entretanto mobilizado e incorporado na 70ª divisão,aquartelada em Nancy. Foi feito prisioneiro em 21/6/1940 e internado no
Stalag XII,em Treviri. Libertado em 1941 reiniciou o ensino no liceu Pasteur e depois no liceu Condorcet e transformou-se na mais
representativa figura das letras francesas da 2ª parte do século XX e num dos pensadores fundamentais da modernidade,politicamente
comprometido como no passado foram Vítor Hugo e Emile Zola,entre outros.
O livro AS PALAVRAS é a autobiografia de Jean-Paul Sartre, sobre a sua infância,até cerca dos dez,onze anos,e foi escrito por ele quando
já tinha á volta de sessenta anos. Foi o último livro completo escrito por Sartre.
E como foi a infância de Jean-Paul Sartre ? Já vamos dar-lhe a palavra,mas antes fica aqui o que se diz na apresentação desta edição :
" esta autobiografia é,acima de tudo uma acusação: o grande defeito da sua infância foi,na opinião de Sartre, a "facilidade", e até a gratuidade
de uma existência toda de "palavras",mas desprovida dos problemas que o ajudariam a encontrar o seu lugar no mundo. Órfão de pai,
criança mimada demais,incumbida do papel de menino perfeito,de menino-génio logo aos 8 anos,ficou asfixiado,sem contactos não só
com a vida exterior como,pior ainda,com a personalidade autêntica dos que o rodeavam. E,por via de consequência,sem meios de se
conhecer a si próprio ".
JEAN-PAUL SARTRE nasceu aos dez meses " melhor cozido que os outros,mais dourado,mais estalante por haver ficado mais tempo
no forno ". O pai , Jean-Baptiste,oficial da marinha e já roído pelas febres da Cochinchina,conheceu a mãe,Anne-Marie Schweitzer,e
" apoderou-se daquela mocetona desamparada,desposou-a,fez-lhe um filho a galope,eu,e tentou refugiar-se na morte " . A morte do pai
" foi o grande acontecimento da minha vida : devolveu minha mãe aos seus grilhões e deu-me a mim,a liberdade ".
SARTRE era "uma criança bem comportada",não tinha nenhuma agressividade,ignorava a violência e o ódio e desconhecia o ciúme.
Não tinha ninguém contra quem se revoltasse. Não se considerava um chefe : " não sou um chefe,nem aspiro a sê-lo. Comandar e obedecer
dão no mesmo.Nunca na minha vida dei ordem sem rir,sem fazer rir ; é que não estou roído pelo cancro do poder."
" Comecei a minha vida como hei-de acabá-la,sem dúvida: no meio dos livros. No escritório de meu avô havia-os por toda a parte. Ainda
eu não sabia ler e já refverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas,apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou
nobremente espacejadas em áleas de menires,eu sentia que a prosperidade da nossa família dependia delas."
Filho único,brincava sózinho. Aos 9 anos,não imaginava que o meu isolamento pudesse acabar. Mas,aos 10 anos " tinha,finalmente,amigos!"
Da mãe,diz: " Eu tinha uma irmã mais velha,minha mãe,e aspirava a ter uma irmãzinha. Ainda hoje - 1963 -é realmente o único laço de
parentesco que me comove.
O avô,Charles Schweitzer,educara-o no respeito da democracia burguesa e despertara-o para o humanismo.Charles Schweitzer,o avô
materno,era professor e quando Sartre tinha oito dias, " como eu parecesse distrair-me com o tínido de uma colher,decretara que eu tinha
ouvido". Charles Schweitzer era um homem culto e virtuoso que pensava ter uma família feliz e que " o Eterno lhe abençoara a casa. Dizia,
por vezes : " Meus filhos,como é bom não termos nada que nos censurar."
Educado na fé católica, " aprendi que o Todo-Poderoso me criara para sua maior glória: era mais do que eu ousara sonhar. Mas,posteriormente,no Deus " fashionable " que me ensinaram,já não reconheci aquele que a minha alma aguardava. Haviam-me baptizado,
como a tantos outros,a fim de preservar a minha independência : negando-me o baptismo,temiam violentar a minha alma; católico registado,
eu era livre,eu era normal : " mais tarde,diziam,poderá fazer o que quizer ".
JEAN-PAUL SARTRE era uma criança snob e conhecera até aí apenas " as vaidades de um cão de luxo ". Publicamente,era um impostor :
o famoso neto do célebre Charles Schweitzer. A biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita,a sua variedade
e a sua imprevisibilidade. Deitado no tapete,empreendi áridas viagens através de Fontenelle,Aristófanes,Rabelais... Eu era La Pérouse,
Magalhães, Vasco da Gama."
Aos 10 anos e três meses,no Liceu Henri IV,como aluno externo,foi o último na primeira composição,mas depois as coisas melhoraram :
" tornei-me sem grande esforço um aluno bastante bom ", tendo perdido o tratamento de favor dos professores, " mas já estava habituado
à democracia ". Aos 10 anos, " estava seguro de mim : modesto,intolerável,via nas minhas derrotas as condições da minha vitória póstuma".
As Palavras ! Mas,escrever para quê ?
"Que outra coisa fazer ? " nulla dies sine linea " . É o meu hábito e é,também o meu ofício. Durante muito tempo tomei a pena por uma espada; agora,conheço a nossa impotência. Não importa : faço e farei livros; são necessários; sempre servem,apesar de tudo. A cultura
não salva nada nem ninguém,não justifica. Mas é um produto do homem : o homem projecta-se nela,reconhece-se nela ."
..................................................................................................................... AS PALAVRAS de Jean-Paul Sartre. Comprei este livro no
dia 5 /10/1971,tinha eu dezanove anos,quase a fazer vinte.Já lá vão mais de quarenta e três anos. Não admira que o livro esteja um
pouco velho e com as páginas amareladas. Mas está vivo. Voltou a ser lido com atenção e vai regressar á estante onde tem estado,
quem sabe, para mais uma sesta de alguns anos.
As palavras, são das boas coisas que a vida tem. Para além de conhecermos as nossas palavras, só ganhamos em ler ou ouvir
outras palavras, que possam enriquecer as nossas.