NOTA 70 - A PESTE - de Albert Camus

A imprensa,tão tagarela no caso dos ratos,já não falava de nada. É que os ratos morrem na rua e os homens no seu quarto.
E os jornais só se ocupam da rua. Mas a perfeitura e a municipalidade começavam a interrogar-se. Enquanto cada médico não tinha 
tido conhecimento de mais de dois ou três casos ninguém tinha pensado em fazer o que quer que fosse. Mas,em suma,bastou
que alguém pensasse em fazer a soma. E a soma era consternadora. Apenas em alguns dias,os casos mortais multiplicaram-se
e tornou-se evidente,para aqueles que se preocupavam com esta moléstia curiosa,que se tratava de uma verdadeira epidemia.
Foi o momento que Castel,um colega de Rieux,muito mais velho que ele,escolheu para vir visitá-lo.
- Naturalmente - perguntou - ,sabe do que se trata, Rieux ?
- Espero o resultado das análises.
- Pois eu sei. E não preciso de análises. Fiz uma parte da minha carreira na China e vi alguns casos em Paris,há uns vinte anos.
Simplesmente,nessa altura,não houve a coragem de lhes dar um nome. A opinião pública é sagrada : nada de pânico. Sobretudo,
nada de pânico. E depois,como dizia um colega: "É impossível,toda a gente sabe que ela desapareceu do Ocidente".  Sim,
toda a gente sabia,excepto os mortos.
Vamos,Rieux,você sabe tão bem como eu o que é.
Rieux reflectia. Pela janela do escritório,olhava a falésia rochosa que se fechava,além,sobre a baía. O céu,embora azul,tinha um
reflexo baço,que se esbatia á medida que a tarde avançava.
- É verdade,Castel - respondeu. - É quase incrível,mas parece-me bem que é a peste." 
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Não é para admirar que ALBERT CAMUS tenha recebido o Prémio Nobel de Literatura em 1957, precisamente dez anos após
ter publicado este excelente livro, que descreve a epidemia da peste,na década de 1940, que se abateu sobre a cidade de Orão,
uma Perfeitura francesa na costa argelina.
A PESTE é a crónica que o Dr. Bernard Rieux faz desses meses de sofrimento que se viveram em Orão e que causaram muitos
milhares de mortos. O narrador do livro é,pois, o Dr.Rieux,médico de Orão,que tratava os doentes com a peste.É a principal
personagem deste livro. Um médico corajoso,prestável,com bom senso,e que no meio daquele flagelo,ainda assim chegava
á conclusão de que " há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar " e que " não se felicita um professor por
ensinar que dois e dois são quatro.Felicitar-se-há talvez por ter escolhido essa bela profissão ".
Mas existem outras personagens igualmente salientes ; Jean Tarrou, um homem que vivia dos seus rendimentos e que
habitava num hotel do centro da cidade,mas que ninguém sabia dizer de onde tinha vindo nem porque estava ali. Mais á
frente,confessa-se : o pai era Delegado do Ministério Público e pedia a condenação á pena de morte dos acusados,coisa
com que Tarrou não concordava. Diz :" Conheci a pobreza aos dezoito anos,ao sair da abastança. Exerci mil profissões para
ganhar a vida,e não me dei muito mal. Mas o que me interessava era a condenação á morte. Queria ajustar umas contas com
o mocho ruço. Por consequência,meti-me na política,como é costume dizer-se. Não queria ser atacado pela peste ".
Contudo, Tarrou, acabou também por morrer com a peste de Orão.
Outro personagem saliente é Cottard, oficialmente, representante de vinhos e de licores,que parecia ser o único homem na cidade 
que,apesar da peste,continuava a ser a imagem viva da satisfação,embora,no início,fosse um bocado estranho e tenha feito uma
tentativa de suicídio e,no final,salvo da doença,mas um pouco enlouquecido,é preso por se ter posto aos tiros da janela do seu
apartamento,tendo até ferido um agente.
O jornalista Rambert também é um personagem de destaque,um estrangeiro de Orão,que quando a peste alastrou e as portas
da cidade foram fechadas,quis sair clandestinamente,dispondo-se a pagar 10.000 francos ,mas acabou por desistir da ideia.
Joseph Grand, o modesto empregado camarário,alto e magro,com um andar de seminarista e a arte de caminhar junto aos
muros e de deslizar por entre as portas,era impossível imaginá-lo noutro lado que não fosse diante de uma secretária,revendo
as tarifas dos banhos de duche da cidade ou a reunir para um jovem redactor os elementos de um relatório para a nova taxa
sobre a recolha de lixos caseiros. Também Grand, a dado passo se confessa ao Dr. Rieux : tinha casado muito novo com uma
rapariga pobre da sua vizinhança. Fora mesmo para casar que abandonara os estudos e arranjara um emprego. Um dia,
diante de uma loja de natal,a futura mulher,Jeanne,que olhava para a montra,maravilhada,tinha-se voltado para ele,dizendo :
" Como é bonito !". Ele apertara-lhe a mão. Fora assim que o casamento se decidira. O resto da história,segundo Grand,era
muito simples. E o mesmo para todos: a gente casa-se,ama ainda um pouco,trabalha. Trabalha tanto que se esquece de amar.
O futuro lentamente fechado,a pobreza,e o silêncio dos serões á volta da mesa - é difícil existir paixão num tal universo.
Jeanne acabou por partir e Joseph Grand não recomeçou porque continuava a pensar nela e lhe faltava " a fé " .
- Desculpe,doutor - disse Grand - ,mas,como dizer ? Tenho confiança em si. Consigo,posso falar.
Há mais alguns personagens,mas fiquemos por aqui. Umas breves palavras sobre a peste em Orão : o primeiro sintoma da
peste,foram os milhares de ratos que apareceram para morrer á luz do dia. E, " quando os ratos deixam o navio ..." . Depois,
toda a cidade tinha febre e generalizavam-se os gânglios inchados. O Dr. Rieux recordava pestes passadas e dizia : " as três
dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de um milhão de mortos " e fala de Constantinopla,de Cantão,
de Atenas,de Marselha,de Haifa,de Milão e de Londres. Os números de mortes em Orão,foram sempre subindo nas 1ªs semanas :
3ª - 302; 5ª - 321; 6ª - 345 e a média passou a 500 e subiu para 700, embora o que caracterizava a situação era " o exemplo
comovente de calma e sangue frio " que dava a população. Finalmente,depois de muitos meses de sofrimento " a doença
partia como tinha vindo " e a epidemia podia considerar-se vencida. Dançava-se em todas as praças e os sinos da cidade
repicaram toda a tarde,enchendo com as suas vibrações um céu azul e dourado.
Contudo,ficava um aviso do Dr. Rieux : o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca; pode ficar dezenas de anos
adormecido nos móveis e na roupa,espera pacientemente nos quartos,nas caves,nas malas,nos lenços e na papelada. E sabia
também que viria talvez o dia em que,para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os
mandaria morrer numa cidade feliz.
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Para quem goste pouco de ler, tem aqui, nas páginas de  "A Peste"  de Albert camus, uma excelente oportunidade para
se tornar um adepto da leitura.