NOTA 11 - CRÓNICAS DA GUERRA - de Alfredo Jorge Pinhal
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QUANDO O CORREIO CHEGA
Ponto de encontro de vontades,marco de um entendimento maior e informação de uma realidade viva e desejada,o correio
assume uma importância enorme para militares que se encontrem no Ultramar. O conhecimento de uma nova realidade não é
acompanhado pela fugaz diluição daquilo que se era,mas funciona antes como estímulo perspicaz para continuar a manter um
contacto que,ultrapassando o tempo,chega ao sentimento.
Assim,é ver a alegria,pouco controlada,de militares separados de amigos e familiares,quando saúdam com um largo sorriso,
misto de vergonha e de alegria,a carta que os irá levar por alguns minutos ao contacto,ledo e calmo,com aquilo que construiram
ao longo da vintena de anos da sua existência.
Num aquartelamento de frente,onde há menos possibilidades de distração,os soldados possuem uma peculiar forma de sentir a
chegada do correio,já que não existe o deligente funcionário dos C.T.T. para ir depôr em casa de cada um,aquilo que lhe é destinado.
Quando lá ao longe se começa a ouvir o ruído surdo e vago dos motores do táxi aéreo,é vê-los,aos soldados,a gritarem a plenos
pulmões,impelidos por uma força que não conseguem controlar : " Avião !", "Avião!","Avião!" ... É que "ali" pode vir o conforto psíquico
que irá transformar aquele dia,que até então era de esperança,num enorme e ridente festejar de vida.
Quando o avião chega,saem géneros frescos,peças de mecânica ... e o inconfundível saco do correio. A expectativa aumenta. Na
Secretaria faz-se a separação : oficiais,sargentos e soldados. Estes,que são em maior número,possuem o maço mais volumoso.
O sargento de dia,transportando entre braços o precioso conteúdo,sai á procura de um local alto,donde,com mais facilidade,possa
fazer a distribuição. Mas antes que alcance isso,vê atrás de si,ao seu lado e á sua frente,um grupo de militares que lhe impedem o
caminhar. Mas não há distúrbios. Há esperança,pois "deve chegar hoje uma carta da minha namorada,ou ,pelo menos,notícias da família ... ".
Os nomes vão surgindo e os contemplados pulam por dentro. Mas até á última carta,todos esperam,pois aquela,pode ser,finalmente,a sua.
Depois - sentimos bem que as pessoas são seres individualizados. Uns,procuram uma árvore solitária e sentam-se junto ao tronco,
quedos,absortos e felizes com as notícias que o avião lhes trouxe ; outros, preferem um recanto da caserna ques lhes permita a
reflexão ; ao passo que,aparece sempre o grupo dos que gostam de contar aos amigos aquilo que mal acabaram de ler.
Passados os primeiros minutos,fica a certeza de uma posição que se tomou,e aquele dia que até ali fora de esperança,transformara-se,
por causa do correio,em mais um dia no qual os laços com os familiares e amigos do continente se tinham fortalecido.
Quando o correio chega,os corpos vibram,as almas sonham e o homem transforma-se,através do sentimento e da razão,
num ser superior e solidário.
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(P.S. - escrito em Cabo Delgado,Moçambique,em outubro de 1973.Publicado no jornal "O Sesimbrense" em 23/12/1973)
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O ALFAIATE
Justo é chamarmos as pessoas pelo nome próprio,mas muitas vezes funciona a alcunha como representativa de características
fisiológicas ou psíquicas dum dado indivíduo. Também acontece que, quando não sabemos o nome de uma pessoa,é frequente
usarmos a profissão como epíteto.
No nosso acampamento militar, " O Alfaiate " não tinha nome; era sómente "alfaiate". Mas,concomitantemente,a popularidade que
tinha granjeado devido ao bom humor,á justiça e á integração que conseguia fazer entre soldados africanos e europeus,fazia com
que, quando alguém dizia "aí vem o alfaiate",todos se voltassem,com um sorriso nos lábios e predispostos para a alegria,porque
sabiam que se seguiria um bom momento de convívio entre toda a gente.
Depois do trabalho,e no crepúsculo de mais um dia,os soldados sentavam-se em pequenos grupos,conversando sobre a última
operação ou ácerca das notícias que o avião tinha trazido. Eram conversas fáceis e que faziam desanuviar um pouco,o espírito
ocupado com as preocupações e os trabalhos da guerra.
Era interessante verificar que os soldados africanos se agrupavam conforme as raças : os macondes iam para um local, os
macuas escolhiam outro, enquanto os suhaili ocupavam um terceiro. Com os metropolitanos,os grupos formavam-se conforme
a amizade maior ou menor que na caserna se tinha criado com "a" ou "b" .
Mas quando surgia o alfaiate,todos os grupos se juntavam e aquele indivíduo conseguia prender a atenção e dar alegria a várias
dezenas de soldados. Tinha espírito e engenho e sabia histórias antigas que divertiam quem as ouvia. Mas,mais importante que
isso,era a participação que conseguia tirar das pessoas; e não era raro vermos um maconde ser secundado por um europeu e
este por um suhaili. Naqueles encontros não havia raças,nem dialetos. Todos se percebiam e comungavam do mesmo desejo de
satisfação.
Quando o alfaiate se ia embora,os militares separavam-se e os grupos já não eram os mesmos,porque,entretanto,um maconde
ficara a falar com um europeu e um macua com um suhaili. Assim se fazia uma integração rácica e social que muitas vezes a
acção psicológica programada do C. G. não conseguia. É que, uma pessoa como o alfaiate,consegue com bastante mais facilidade,
influenciar e predispor bem,um grupo heterogénio e diversificado como aquele,do que um voluntarioso e deligente membro das
forças armadas,que,do papel,tem que passar para uma realidade á qual,por muito que queira,pode ser díficil a adaptação.
Depois de um encontro com o alfaiate e quando o Sol ia dormir por detrás dos montes,que já pertenciam a outra nação,os militares,
esquecidos das dificuldades e da ausência,iam também eles descansar,com o espírito mais alegre e descontraido,lembrando que
a guerra é,essencialmente,uma via para se atingir a paz,onde macondes,macuas,europeus e suhailis,se deêm tão bem,como
naqueles bem dispostos e frequentes momentos que o alfaiate proporcionava.
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(P.S. - publicada no jornal "O Sesimbrense" de 6/1/1974)
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O VALENTE SOLDADO MILLUS
Não é nada ao Chveik, nem lhe veste a pele. Mas é um valente soldado.
É africano,vive perto de Nampula, e faz da obediência,da perspicácia e da vontade, as suas armas. Aprendeu com o pai,que é
caçador,a andar no mato e a conhecer os seus mistérios. Aí criou um grande sentido de orientação, e sabe dizer quando foi feita
uma pegada e por quê. Ia á procura dos irmãos e dos amigos que brincavam na floresta e para os encontrar seguia-lhes o rasto.
Assim aprendeu a conhecer uma pegada de criança,de homem ou de mulher; e também sabe dizer se levam carga ou não.
Quando era pequeno,o pai ensinou-lhe o manejo de armas brancas, e domina perfeitamente a lança com a qual matava gazelas
e porcos do mato. Era,também,um exímio e destro caçador.
Veio para a "tropa" há alguns meses e foi conhecer cidades onde nunca tinha ido.Gostou muito de Lourenço Marques. Diz que é
uma grande cidade.
Ensinaram-lhe táctica de guerrilha e técnica de combate,e ele,conhecedor de magras letras,ficou a saber o que vinha nos livros.
Passados uns tempos mandaram-no para o norte. Aí,iria mostrar que era um valente soldado.
Quando sai para uma operação oferece-se muitas vezes para ir á frente. Utiliza a catana com certeza e com vigor. Corta
rapidamente os ramos que obtruem a progressão e com um olhar arguto e perspicaz,consegue ver para além do visível.
Ele sabe que mais á frente pode estar uma emboscada à sua espera,e dos tempos da infância guardou uma desenvolvida
intuição que lhe diz quando está gente próximo. Nunca profere termos inconcussos,nem é adepto do dogma. Diz sempre :
" parece-me que...". Quando se aproxima uma zona da mata mais aberta,ele,que vai á frente,manda parar a coluna. Avança
sozinho alguns metros para se certificar de que não há perigo,e,quando pensa que se pode continuar,faz sinal aos companheiros,
que o seguem com confiança. Faz isto expontaneamente,sem necessitar de ordem. A proximidade de vida é denunciada por ele
através de agudo olfato,que consegue vencer distâncias e sentir aromas que poucos mais detetam. É um tipo reservado e obediente.
Os militares têm por ele admiração e estima,porque a justiça faz parte da sua essência,pois sabem que o que fôr justo será
enaltecido e o que fôr injusto não terá a sua concordãncia.
Nas divergências que por vezes se levantam entre europeus e africanos,toma sempre uma posição correcta,que não é esbatida
pelo confronto das cores. Ele compreende que gente má existe em todo o lado,seja na Europa ou em África,na América ou na
Ásia. Millus sabe que não é a cor o móbil principal das lutas entre os povos. Sabe que o confronto se filia muito mais em questões
de ordem económica e política,do que na cor da pele. Acredita na integração rácica,mas para isso o mundo terá que mostrar
outra face,mais justa,menos egoista,mais humana.
Nas horas vagas,chamam-lhe ingénuo. E dizem que em todos os países,em todos os empregos,em todos os meios sociais,
há sempre alguém que se distingue pelo virtuosismo do raciocínio,pela análise fácil das questões,pelo pendor optimista da intervenção.
Naquele aquartelamento,Millus é a imagem real de um valente soldado que,possuindo uma varinha mágica,vai com ela até
espaços que os outros não alcançam. E gosta de dizer que a filosofia de cada um não abarca tudo aquilo que há entre o céu e a Terra.
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(Cabo Delgado,Moçambique,final de 1973. Publicada do jornal "O Sesimbrense" de 3/2/1974)